domingo, 24 de abril de 2016

Histórias da Casa Branca: teorias do caos numa América que, afinal, ainda é grande



«Os europeus gostam de compor a sua versão da América. Gostam de apontar o dedo e dizer: ‘isso, o sonho, não está a correr muito bem, pois não?’ Do meu ponto de vista, o sonho está a funcionar melhor do que vocês pensam. O que não está a correr nada bem é a Palestina, o Congo. Nesses lugares é que o sonho não está a funcionar mesmo nada. (…) São sobretudo europeus que dizem que a classe média americana está em colapso. (…) Leio muito, ando pelo mundo, mas quando se compara o nível de vida da maior parte dos americanos com o da maior parte da população mundial, vê-se que vivemos muito bem por aqui. É muito difícil para mim entender a noção de colapso da classe média. Percebo que é o que os políticos andam a dizer para se fazerem eleger. Sei que há uma franja da sociedade americana que sente que não é recompensada pelos seus esforços e isso é verdade. É que faz com que muitas pessoas votem em Donald Trump. Sentem que têm sido esquecidas, que as promessas do Ronald Reagan nos anos 80 não as abrangeram, e provavelmente isso é verdade. E há uma enorme disparidade neste país, não apenas a óbvia entre ricos e pobres, mas entre os ricos e a classe média. Isso é um problema da distribuição de riqueza neste país. Mas não acredito que a classe média esteja a colapsar. Está, talvez, a mudar. Talvez a passar por um enorme stress, mas não a colapsar».

RICHARD FORD, professor de Literatura na Universidade de Columbia e escritor, entrevista ao «ípsilon»





Donald Trump está a conseguir convencer milhões de republicanos de que «a América precisa de conseguir voltar a ser grande».

Mas… será que ela alguma vez deixou de o ser?

Barack Obama, que nos últimos dias voltou a mostrar o seu poder de influência nas chancelarias europeias no jantar do 90.º aniversário da Raínha Isabel II e em posterior encontro com Merkel (em que elogiou a política de Angela para os refugiados e insistiu nas vantagens de um grande acordo comercial EUA-UE), parece apostado em dedicar a reta final do seu segundo mandato a provar que Trump está completamente errado.

E Hillary Clinton, a sua mais que certa sucessora na nomeação democrata e provável substituta na Casa Branca a partir de janeiro, segue a mesma linha de argumentação. 

«A América continua a ser grande. Somos um farol de esperança e uma inspiração para todos os que querem seguir o caminho da Liberdade e dos Direitos Humanos. Nenhum problema decisivo do mundo atual pode ser resolvido sem a ajuda dos EUA», insiste a ex-secretária de Estado nos comícios das primárias, numa tentativa de desmontar os mitos alimentados por Trump e abordados por Sanders.




As piores mentiras são aquelas que têm algum fundo de verdade.

E o modo como Richard Ford, nas passagens mencionadas no início desta crónica, endereçou o tema acaba por denunciar essa contradição.

O autor do recente «Francamente Frank» pôs bem o dedo na ferida: não faz sentido falar-se em «colapso da classe média» quando uma análise objetiva dos anos Obama mostra uma recuperação espetacular nos principais índices económicos.

Muito menos fará sentido decretar o «fim do sonho americano», quando vemos que os EUA voltaram a ser aqueles que, nos anos pós crise, maior capacidade mostraram de se reerguer.


O que se passa, então?

Mas também não dá para ignorar o enorme desconforto que atinge o ambiente político, mediático e social desta eleição presidencial de 2016.

Não, a culpa não é só de Donald Trump.

O «frontrunner» inesperado das primárias republicanas é a demonstração mais visível de um problema muito complicado.

É também Ted Cruz ser o segundo classificado – e já ter ganho tantos estados. É o falhanço total e completo de candidatos mais «aceitáveis», como Jeb Bush ou Marco Rubio.

E é, sejamos claros, o número incrível de estados que Hillary Clinton já perdeu para Bernie Sanders.

Depois da vitória folgada em Nova Iorque, não restaram grandes dúvidas: Hillary vai mesmo ser nomeada. 

O provável triunfo da antiga senadora Clinton na Pensilvânia, dia 26, será mais um fator de reforço desta tendência inexorável.

A questão é outra: Bernie, com o seu discurso duro, direto, cru e frontal, não para de roubar votos à superfavorita e aproveitou estes meses de campanha para praticamente anular a desvantagem enorme que tinha nas sondagens nacionais.



Uma nomeação de Hillary pela via dos superdelegados, com uma vantagem muito curta nos delegados por votação, pode ser coroação com sabor a pouco para quem parecia ter tudo para, nesta corrida de 2016, beneficiar de uma auto-estrada rumo à Casa Branca.

A situação atual do lado democrata dá 1446 delegados eleitos para Hillary, para 1202 de Bernie. A diferença manteria tudo em aberto se não fossem os superdelegados (502 para Clinton, só 38 para Sanders).

Tudo somado, os 1948 de Hillary dão-lhe um horizonte próximo dos 2.383 necessários para chegar à Convenção de Filadélfia com a questão mais que resolvida.

O ponto, não sendo matemático, é político: conseguirá Hillary «reconciliar» o eleitorado que está a dar a Sanders uma caminhada histórica para quem parecia condenado a não passar de um «outsider»? 

Ou haverá mesmo o risco de uma percentagem significativa do «mundo Sanders» poder cair na tentação de votar Trump em novembro, em nome de uma suposta «insurreição anti políticos do sistema»?


Máquina de Cruz a fazer tremer vantagem de Donald

Do lado republicano, ganha cada vez mais força um cenário de confusão total para a convenção do próximo verão, em Cleveland, Ohio.

Com 844 delegados, e a forte perspetiva de vencer a próxima batalha da Pensilvânia, Donald Trump será, certamente, o candidato mais votado e com mais delegados até ao fim destas primárias.

Mas as probabilidades do multimilionário nova-iorquino conseguir chegar ao número mágico de 1.237 delegados até ao fim destas primárias são cada vez mais reduzidas.

Ted Cruz, o senador texano que faz juras a Deus e insulta os políticos em Washington DC, está a capitalizar ao máximo o «sentimento anti-Trump» e soma triunfos em estados.



Cruz é segundo, com 543 delegados obtidos por votação.

Mas a diferença real entre Donald e Ted, quando se chegar à convenção republicana, pode ser bem menor do que os 301 que separam neste momento os resultados de cada um.

Ted Cruz está longe de ser uma figura querida pelo «establishment» republicano. Em alguns temas, situa-se, até, mais longe ainda desse núcleo do que Donald Trump.

Mas a política americana tem mistérios difíceis de antecipar.


A estranha aliança Cruz/Kasich

Convém não esquecer que os 171 delegados obtidos por Rubio (que depois da humilhação na Florida suspendeu a campanha) não podem ser diretamente atribuídos a Cruz logo numa primeira votação na convenção, mas terão peso importante numa eventual segunda ronda.

Já em relação aos atuais 148 delegados somados pelo governador do Ohio, John Kasich (que ainda está na corrida e promete aumentar esse número mais um pouco), começa a ganhar força o cenário de Ted Cruz poder vir a aproveitá-los.

Em declarações feitas domingo à noite, as campanhas de Cruz e Kasich anunciaram que irão fazer «esforços conjuntos» nas primárias dos próximos três estados: no Indiana, Kasich apelará ao voto Cruz; no Oregon e no Novo México, será Ted a endossar o governador do Ohio.

A ideia é que, nesses três estados 'winner takes all', Donald Trump perca para o opositor com melhores condições de o travar. 

Uma estranha aliança, no mínimo, tão grandes são as diferenças ideológicas entre o ultraconservador texano Ted Cruz e o moderado governador do Ohio (que até concorda com a Reforma da Saúde de Obama), John Kasich.

Moral da história: Trump vai ser o mais votado, pode até chegar relativamente próximo do número mágico (pelo menos passará dos quatro dígitos), mas um cenário de «brokered convention» em Cleveland, com vontade assumida de vários setores do Partido Republicano de barrar o caminho à nomeação de Donald, passou em poucas semanas de puro «wishful thinking» a hipótese a considerar seriamente.

Nas últimas semanas, houve sinais a reforçar este cenário.

A força de Trump nas urnas é quase proporcional à sua fraqueza nas estruturas partidárias. Donald perdeu para Cruz disputas na atribuição de delegados (65 em 94 só no último sábado, com os 25 do Kentucky ainda por definir).

No Maine, de 20 que estavam em aberto, 19 foram para Cruz, só um para Donald; Ted somou mais nove no Minnesota, único estado ganho nas urnas por Marco Rubio, ganhando mais algumas «migalhas» noutros estados que tinham delegados em aberto.

Podem sobrar dúvidas, no plano político, sobre o que se vai passar nas convenções e depois em novembro.

Mas resta uma certeza: ao contrário do que Trump está a dizer a multidões ávidas por uma boa sanha persecutória, a América continua mesmo a ser grande.