sexta-feira, 25 de março de 2016

Histórias da Casa Branca: a jogada cubana de Barack Obama



«O general MacArthur só considerou que ganhou ao Japão quando obrigou o imperador Hirohito a ser fotografado ao seu lado. Os simbolismos só valem a pena quando são úteis»

Ferreira Fernandes, crónica no Diário de Notícias


«Sinto-me muito bem com a minha presidência. Olhando para trás, acho que não há qualquer razão para me sentir envergonhado. Sinto que agi sempre com honestidade e integridade e nunca feri os meus princípios fundamentais. E isso acho que é relevante. Não digo que consegui 100% do que queria, mas acho que conseguimos fazer muita coisa»
                          
BARACK OBAMA, Presidente dos EUA, em declarações aos media na Argentina




A viagem de Obama a Cuba foi histórica, mas teve um revés inesperado. Os brutais atentados em Bruxelas, ocorridos exatamente a meio do programa de três dias do Presidente dos EUA em Havana, retiraram boa parte da atenção mediática que se aguardava



Obama sabe que já será tarde para conseguir levantar o embargo durante a sua presidência. Mas conseguiu, nesta «jogada cubana», o melhor caso de uma «liderança pelo exemplo», apostando na força simbólica que teve aterrar no Air Force One em pleno Aeroporto José Martí



O retraimento americano em zonas como o Médio Oriente e até a Europa, sentido de forma gradual nos anos Obama, não foi apenas o «shift» anunciado nos primeiros anos desta Administração para a Ásia-Pacífico. A aproximação a Cuba e a as relações aprofundadas com países como a Argentina dão conta da prioridade de Obama em reposicionar a influência dos EUA juntos dos países que lhe são geograficamente mais próximos



Enquanto a corrida à sua sucessão nos continua a surpreender (Donald Trump reforça liderança no lado republicano, mas cresce a ideia de uma «contested convention» em Cleveland, sobretudo se o multimilionário não conseguir ganhar a California), Barack Obama dá mostras de querer aproveitar até aos últimos cartuchos o poder de influência do seu segundo mandato presidencial.

A viagem do 44.º Presidente dos EUA a Cuba foi histórica: há quase 90 anos que um «líder do mundo livre» não visitava Havana.

A enorme carga simbólica do gesto cubano de Obama foi evidente e indesmentível.

Barack, Michelle, Malia e Sasha a passearem tranquilamente pelas ruas de Havana (mesmo à chuva...), com o cortejo de seguranças e agentes dos Serviços Secretos a garantirem a «bolha» com que Obama anda em permanência há mais de oito anos, ficará certamente como uma das imagens icónicas dos dois mandatos presidenciais do primeiro presidente negro da história da América.




Tendo em conta a visão política e diplomática do atual Presidente dos EUA, a operação tem que ser considerada um sucesso.

Numa altura em que o ambiente político nos EUA está a resvalar para níveis muito pouco recomendáveis, Obama voltou a provar que a tal «maioria silenciosa» que está a empurrar Trump para a nomeação republicana ainda não chega para retirar a autoridade natural de quem foi eleito duas vezes, com larga margem, para a Casa Branca.

Obama, que não se tem coibido de criticar em público o tom e o modo como está a decorrer o processo de primárias republicanas, voltou a provar que nem todo o discurso político americano caiu numa espécie de loucura coletiva.

Consistente com o que anunciou no final de 2014, o Presidente dos EUA visitou Cuba, cortando com o que considerou ser um «resquício antiquado da Guerra Fria».


Barack e Raul, quem diria?

Apesar das diferenças de visões em questões como os Direitos Humanos, e com pesos diferentes para medir a democracia, Obama, no seu estilo pragmático, quis mostrar, ao lado de Raul Castro, que as divergências ideológicas, programáticas e até etárias entre os dois não os impediram de chegar a uma conclusão comum: norte-americanos e cubanos têm muito a ganhar com esta reaproximação e tinham muito a perder se continuassem de costas voltadas.





E o resto?

Bom, o resto, só o processo político e social em Cuba poderá determinar.

Na linha do que já tinha defendido nas saídas americanas que promoveu no Iraque e no Afeganistão, Barack Obama lembrou que «quem decide os destinos de Cuba são os cubanos».

Barack voltou, assim, a ser um presidente que não se vê como líder ingerente de soberanias alheias. «Cuba é um país soberano», insistiu.



Houve quem visse neste tipo de atitude uma posição tíbia, de fraqueza, em relação ao problema dos direitos políticos e democráticos em Cuba. Sobretudo quando Raul Castro, na conferência de Imprensa conjunta no primeiro dia, aproveitou o momento para atirar, demagógico, a um jornalista da CNN: «Presos políticos? Quem? Onde? Dê-me uma lista de nomes e nós soltamo-los ainda esta noite!»

Obama e Raul Castro são dois líderes completamente diferentes: na visão do mundo, no estilo, na idade e, claro, na forma como chegaram ao poder.

Mas uma vez mais Barack foi capaz de desenvolver uma espécie de «liderança pelo bom senso» e, através de uma relação pessoal que foi criando com o irmão e sucesso de Fidel, atingiu um dos pontos mais altos da sua presidência.




Mesmo sem a concretização do mais relevante em termos económicos (o fim do embargo), a força do gesto parece ser irreversível. «O embargo terminará, não sei é quando e com quem», lançou Obama.

O próprio Raul Castro reconheceu que «as medidas tomadas pelo governo de Obama sobre o tema são positivas, embora insuficientes, por culpa da barragem do Congresso».

A questão cubana marca, de forma clara, o clima de divisão insanável que se vive na política americana.

Os principais líderes republicanos de ascendência cubana (Ted Cruz e Marco Rubio) continuam frontalmente contra esta aproximação a Cuba, porque veem nela uma «cedência inadmissível do líder do mundo livre a um regime ditatorial e ultrapassado».

O ponto é que Obama não está assim muito preocupado com as análises de quem o acusa de ter dado «um último fôlego ao regime castrista».

Para o Presidente dos EUA, o mais relevante é que foi aberto um processo que, no fim do dia, redundará em novas oportunidades económicas e sociais para cubanos e norte-americanas.

O concerto dos Rolling Stones, realizados dias depois da visita de Obama, só foi possível porque antes o Presidente dos EUA abriu o caminho para a capital cubana.





Não por acaso, a popularidade de Barack Obama está, em Cuba, nos 80% -- muito, mas mesmo muito, acima do que sempre teve nos EUA.

O facto de, logo a seguir a ter deixado Havana, ter seguido para a Argentina reforçou o sinal de reposicionamento dos EUA como principal pivot do «mundo americano».





O tango que dançou no Salon de Los Escudos do Centro Cultural Kirchner de Buenos Aires, em jantar oficial oferecido por Marcelo Macri, ilustra bem o estilo pessoal do Presidente dos EUA e simboliza o degelo das relações EUA-Argentina, depois do afastamento na era Kirchner.

Mesmo numa altura em que parece quase impossível fazer valer uma posição sensata na política americana, Barack Obama não desistiu de uma liderança racional. A escolha de Merrick Garland, juiz com registo equilibrado entre opções liberais e conservadores, tornaria difícil uma barragem imediata da maioria republicana no Senado. 

Mesmo que ela aconteça, ficará claro quem é, neste momento, o único «adulto na sala» em Washington. Não será de admirar que haja já quem se inquiete por só o termos na Casa Branca até janeiro de 2017.

Talvez a próxima surpresa, depois da jogada cubana revelada com estrondo no final de 2014, e agora concretizada com a histórica presença em Havana, possa ser uma visita a Hiroshima -- essa mesma, a cidade japonesa destruída por bomba atómica.

Desde 1945, nunca um Presidente do EUA ousou fazê-lo -- mas Obama está a ponderar mais esse passo histórico, aproveitando a cimeira do G7 que se realizará em maio no Japão. 

Fala-se em «reta final de Obama» há já uns tempos, mas a verdade é que os «últimos cartuchos» do primeiro presidente negro da história da América estão a ser, no mínimo, produtivos. 

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