quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Histórias da Casa Branca: Obama no último ano, exemplo e frustração



«A verdade é que ser americano é difícil. Fazer parte de um governo democrático é difícil. Ser cidadão é difícil. É um desafio. É suposto que seja assim. Todos nós somos chamados a viver e encarar as nossas expectativas – não só quando é conveniente, mas também quando é inconveniente. Quando é duro. Quando 
temos medo». 

BARACK OBAMA, discurso «American Values» de 15 de dezembro de 2015 nos National Archives, em resposta aos ataques de Donald Trump à entrada de muçulmanos


«Os Estados Unidos da América são o país mais poderoso do mundo, ponto final. É que não há a mínima comparação»
BARACK OBAMA, discurso Estado da União de 12 de janeiro




A exatamente um ano de deixar a Casa Branca (a tomada de posse do 45.º Presidente dos EUA será a 20 de janeiro de 2017), Barack Obama entra hoje, literalmente, na reta da meta.

O primeiro negro a chegar ao cargo político mais influente do Mundo é já o Presidente da recuperação económica, dos 73 meses seguidos a criar emprego, da redução do défice para dois terços, da criação de um sistema de saúde que já deu cuidados médicos a 18 milhões de americanos, da aposta nas energias renováveis (dominantes nas economias de alguns estados americanos), do combate às alterações climáticas.

Mas também é o Presidente que falhou a reconciliação (o clima político em Washington é hoje mais polarizado do que era em 2008), que ainda não fechou Guantánamo, que não chegou tão longe como queria no «gun control», que não resolveu o impasse no Congresso, que assume a incapacidade de travar fenómenos como o bizarro avanço de Donald Trump no polo oposto do campo político e ideológico.

Recusando a tese que muitos defendem de que, nos anos da sua presidência, a América entrou em declínio, Barack Obama tem vindo a expor o seu argumento de uns EUA que continua a assumir-se como a «nação indispensável», ainda que numa versão diferente, adaptada às mudanças tremendas que o Mundo teve desde a crise económico-financeira de 2007/2009, precisamente o contexto herdado pelo Presidente agora a entrar na reta final.

Desconfortado com o clima que se vive no sistema político americano, e que tem na inesperada liderança de Donald Trump na corrida à nomeação republicana como o seu exemplo mais desconcertante (para mais, com Ted Cruz como alternativa mais forte neste momento), Obama vai tentar aproveitar o último ano para exercer exemplo de pedagogia, num contraponto com o que Trump representa.

A América inclusiva, positiva, otimista e confiante (mas também tolerante, diversa, prudente e atenta aos sinais que vêm do resto do Mundo) é corporizada, em pleno, pelo Presidente dos EUA – e está a tentar ter como sucessora a favorita à nomeação presidencial democrata, Hillary Clinton.

A América zangada, desconfiada, que berra em vez de ouvir e coloca os preconceitos à frente da abertura ao outro tem Donald Trump, Ted Cruz e uma parte da bancada republicana ligada ao Tea Party no Congresso como representantes.

Duas Américas? Pois. Não era isto que Obama, em 2008, sonhava concretizar quando chegasse à Casa Branca.

Mas uma lição que este Presidente, agora a entrar no último ano, tem tido (além do nítido envelhecimento que a sua face e a cor do seu cabelo revelam) é que os sonhos rapidamente se desvanecem neste tempo de contradições e desafios. E Obama, o tal candidato da esperança em 2008, revelou-se um Presidente pragmático e efetivo nos temas essenciais.

O balanço é, pois, positivo – sobretudo se nos focarmos no aspeto económico e na capacidade que Obama teve de surpreender em momentos como o acordo com Cuba (absolutamente inesperado) e mesmo na insistência da contenção nuclear do Irão (que está a ter efeitos de «gamechanger» na região, também na questão dos preços do petróleo e no jogo de forças com a Arábia Saudita e Israel).




«Não podemos invadir e reconstruir todos os países que estão em crise. Isso não prova a nossa liderança, atira-nos para o charco»

Obama mostrou no seu último State of The Union que, por muito que seja criticado pelos republicanos de ter permitido, nos seus sete anos de presidência, que o poder americano tenha diminuído manterá até ao fim a sua visão pragmática do que deve ser a liderança dos EUA no mundo.

A forma como tem lidado com a guerra na Síria não pode ser apontado como um sucesso – mas nunca se saberá que consequências teriam tido um ataque ao regime de Assad, em finais de 2013.

Obama não temeu ter ficado com o lado mais fraco, ao recuar perante a posição de Putin, mas a verdade é que, um ano depois, liderou uma ampla coligação internacional que iniciou os ataques aéreos às posições do Daesh.

É certo que, entretanto, a Rússia entrou na equação (e persistem as dúvidas sobre se Putin não estará a aproveitar o pretexto do combate ao ISIS para ajudar Assad na luta contra os opositores do regime alauíta de Damasco), mas a rota de Obama até ao fim da sua presidência parece, neste ponto, estar traçada: diminuir a ameaça do ISIS pela via aérea e no apoio aos combatentes que no terreno se opõem ao Daesh, reduzindo assim a dimensão do território do «califado».

Mas o essencial da «Doutrina Obama» em relação ao Médio Oriente e às intervenções dos EUA «overseas» não se altera: o Presidente não se revê na noção de «nation building» e, consequente com as retiradas do Iraque e do Afeganistão, não pretende ver os Estados Unidos a ‘derrubar regimes e reconstruir países».

Sinal de «declínio» ou visão «pragmática»? Depende da perspetiva, pelo menos no azimute da dicotomia norte-americana da republicanos «vs» democratas.


«Não deixarei de trabalhar para fechar Guantánamo: é caro, é desnecessário e só serve de brochura para o recrutamento dos nosso inimigos»

A promessa de fechar a prisão de Guantánamo (simbolizada ao segundo dia de mandato, em janeiro de 2009, numa assinatura simbólica sem efeitos legais) tem perseguido Barack Obama como «exemplo maior» da sua incapacidade de concretizar o que tinha apontado na primeira campanha presidencial.

O turbilhão de acontecimentos e prioridades que se seguiram foram diminuindo o espectro – mas a prisão continua lá, em «Gitmo».

É certo que há hoje muito menos presos em Guantánamo, mas também é verdade que há um ano, no State of The Union 2015, Obama já tinha dito que era «tempo de fechar Guantánamo, porque aquela prisão não é o que nós somos».

Será o fecho de Guantánamo um dos trunfos finais de Obama para este último ano?



«O mundo não nos respeita apenas por causa do nosso arsenal, mas por causa da nossa diversidade, da forma como acolhemos todas as fés»

Esta foi talvez a mensagem mais forte de Obama no seu último Estado da União.

O Presidente fez questão de vincar a diferença em relação às posições de Donald Trump e outros candidatos republicanos sobre as minorias e as supostas ameaças que os muçulmanos representam.

O sinal começou a ser dado nos dias anteriores ao State of The Union, quando a Casa Branca fez saber que o Presidente iria ter como convidados Refaai Hamo, um refugiado sírio, e ainda um antigo soldado norte-americano muçulmano.

Obama vincou a sua visão de uma América construída pela diferença, pela integração das minorias, pelo respeito pelo outro. «É isso que somos. É com isto que crescemos e que nos identificamos», lançou o Presidente no seu último State of The Union.

Poderá a América continuar a ter um Presidente assim daqui a um ano? O tema da imigração e dos refugiados poderá ter na corrida presidencial um peso maior do que se imaginaria há uns meses, sobretudo se o duelo final for entre Hillary e Trump.


«O lobby das armas pode ter conseguido tomar o Congresso como refém, mas não conseguiu fazer o mesmo com o povo americano»

O «gun control» pode ter sido uma das maiores frustrações da era Obama.

Pelo menos do ponto de vista legislativo, e depois do fracasso da tentativa de Obama em abril/maio de 2013 (as 20 medidas propostas ao Congresso foram estilhaçadas por um Senado que na altura até tinha maioria democrata), dificilmente o Presidente ainda irá a tempo de conseguir uma grande conquista perante um Capitólio agora totalmente republicano.

Mas Obama, ao insistir na tecla do controlo das armas no seu último Estado da União, mostrou que ainda quer jogar duas cartas finais num tema que é para ele estrutural: a carta do exemplo e a carta das medidas unilaterais.

Sobre esta última, o Presidente já havia mostrado, no final de 2014, em relação à Imigração, que não se deixa intimidar pelas críticas republicanas de ter «tentações tirânicas». Pelo menos, nos temas que considera serem decisivos para o seu legado.

Se houve momento que mudou Obama, na sua forma de se comportar como líder e como Presidente da nação mais poderosa do mundo, foi o massacre de Newtown, Connecticut, a 4 de dezembro de 2012.

Um mês depois de ter sido reeleito, uma tragédia numa escola em Sandy Hook fê-lo colocar a questão do controlo das armas como bandeira para o segundo mandato.

O «gun control» é talvez o melhor exemplo de como o sistema de poder na América pode levar a situações de impasse irresolúvel: apesar da legitimidade do Presidente em impor a via da restrição, o controlo de poderes do Congresso tem mantido impossível a concretização desse caminho.

A «segunda emenda», mencionada à exaustão por quem defende o direito a ter armas para assegurar a sua defesa, está inscrita na Constituição e na génese da sociedade americana – fortemente influenciada pela NRA e pela ideia de que, perante um poder federal e estadual «longínquo e dissipado», nada resta que não seja um sistema próprio de defesa.

Mas Obama não aceita o argumento de que «tirar as armas dos tipos bons não vai diminuir a ameaça imposta pelas armas dos tipos maus», porque não tem uma visão de «olho por olho, dente por dente».

Os republicanos acusam Obama de quererem «retirar as armas de quem já tem direito a elas», o que é simplesmente falso.

Conseguirá o Presidente, no seu último ano em funções, reverter decisivamente esta questão inacabada?


«O futuro que queremos – oportunidade e segurança para as nossas famílias; uma melhor qualidade de vida e um planeta mais pacífico e sustentável para os nossos filhos – está ao nosso alcance. Mas só acontecerá se trabalharmos juntos, se tivermos debates construtivos e racionais. Podemos discordar. Mas a democracia exige laços de confiança entre os cidadãos e deixa de funcionar se pessoas sentirem que as suas vozes não são ouvidas»

No seu último State of The Union, o 44.º Presidente dos EUA, o primeiro negro e um dos mais jovens de sempre, juntou uma espécie de confissão de fracasso em relação ao seu mantra de 2008 “bring the country together” com uma mensagem de esperança numa réstia de bom senso do americano médio.

A «reconciliação» que o jovem presidente eleito em 2008 prometia falhou rotundamente – e ele sabe disso.

Obama deixará uma América mais dividida, mais polarizada, mais afastada entre o cosmopolitismo da costa leste e os valores do Midwest e da «Bible Belt».

É que já não é só uma questão de democratas vs republicanos.

Todo o fenómeno Trump apanhou de surpresa o «core» republicano. Candidatos mais clássicos como Jeb Bush passaram, em meses, de favoritos a potenciais desistentes. Marco Rubio e Chris Christie, possíveis nomeados até há cerca de um ano, ambos com trunfos atraentes para os media e para uma boa história de campanha presidencial, não conseguem fazer ouvir a sua voz, perante o domínio do estilo Trump.

Está a vigorar uma via «zangada», «radical», por vezes mesmo «irracional», como, de forma subliminar mas com destinatário claro, o Presidente Obama lançou.

É outra contradição dos EUA: o mesmo país que elegeu duas vezes um Presidente com discurso que apela à racionalidade tende, agora, para uma perigosa nomeação presidencial de alguém com um discurso entre o irresponsável e o surreal, como Donald Trump.

A exatamente um ano de abandonar a Casa Branca (o dia da posse do seu sucessor, ou sucessora…, será 20 de janeiro de 2017), e com o calendário eleitoral para a sua sucessão a retirar-lhe boa parte do protagonismo, Barack Obama tentou, no seu último discurso de Estado da União, juntar trunfos de sete anos de governação que apresentar uma transformação globalmente positiva na economia e na sociedade americana com um exemplo simbólico, que a partir de agora radica mais no plano da moral e da pedagogia, já não tanto no campo da luta política e legislativa.

Sete anos de Obama: houve muita turbulência nas palavras dos opositores, nos primeiros anos de governação no plano interno e nas ameaças emergentes a nível externo.

Mas quem for capaz de completar a tal análise racional pedida pelo Presidente, e que cada vez menos se dispõem a executar, percebe que o balanço é claramente positivo.

Para quem pegou nos EUA a caminho de uma Depressão económica só comparável à dos anos 30 do século XX, não é coisa pouca.

Mais de metade dos americanos não pensa assim – e continuam a reprovar a presidência Obama.

Mas, como muito bem notou David Ignatius em artigo no Washington Post, dias depois do notável discurso de Obama nos National Archives, sobre a «América Tolerante», em contraponto com os desvarios de Trump e outros republicanos sobre os muçulmanos, «Barack Obama é um presidente racionalista a governar na era da ansiedade».

E isso, de facto, é um paradoxo do qual nunca se libertará por completo.


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