quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Histórias da Casa Branca: da luz e das trevas

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 7 DE JANEIRO DE 2015:

«Se tivesse que decidir se devemos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria um momento em preferir o segundo» 
Thomas Jefferson, Presidente dos EUA entre 1801 e 1809 
  
«A França tem maior população muçulmana na Europa. São cerca de cinco milhões. Isso é uma consequência do colonialismo francês, a Argélia, Tunísia, Marrocos, países assim. E portanto isso significa que esses islâmicos radicais estão mais envolvidos na sociedade. São «locals». Conhecem o terreno. É uma preocupação. (…) Muitos muçulmanos, mesmo muçulmanos moderados, têm dificuldades com esta questão de lidar com o conceito de blasfémia. É encarado como algo terrível. Vejo muitos muçulmanos moderados a demorar a aparecer. Onde estão, por exemplo, os líderes moderados eleitos dos países muçulmanos?»  
Fareed Zakaria, analista de política internacional na CNN 
  

O ataque de quarta de manhã às instalações do «Charlie Hebdo», que provocou 12 mortos e 10 feridos, foi o maior atentato terrorista em solo francês do último meio século e a principal ação de terrorismo integrado no fundamentalismo islâmico na Europa, desde o 7 de julho de 2005, em Londres.  

Infelizmente, não foi total surpresa para as autoridades: desde as últimas semanas de 2014, sobretudo entre o natal e o ano novo, os níveis de alerta terrorista em França e no Reino Unido estavam já muito elevados. 

E o que tinha ocorrido, nos últimos meses em cidades francesas (três deles num espaço de três dias, pouco antes do natal, em Nantes e Dijon), quase prenunciava que algo mais significativo estava para acontecer.  

Por outro lado, o aumento das ações da coligação internacional liderada pelos EUA, com forte participação britânica e francesa, na campanha de contra-terrorismo para travar e eliminar o Estado Islâmico na Síria e no Iraque, levou a uma escalada da ameaça terrorista na Europa, desde setembro.  

Os sinais estavam lá, mas, na verdade, nunca estamos preparados para assistir ao que assistimos, de forma repetida nas televisões, net, rádio e jornais, nas últimas 28, desde as 11 da manhã de quarta.  

Dois homens altamente treinados, com apetrechamento hi tech e frieza assustadora na execução, a entrar numa rua calma e diferenciada de Paris, em manhã aparentementem tranquila, furando regras de segurança de um edifício que até tinha especial proteção policial, e provocando uma chacina que mudará, certamente, os dados deste jogo em que, desde 11 de Setembro de 2001, vivemos: o da travagem da ameaça do terrorismo. 

A acrescentar a tudo isto, o ataque de ontem tem dados novos: o alvo, desta vez, foi muito preciso (um jornal que incomodava); e esse alvo não foi a cúpula do poder político (ataques à Casa Branca e ao Pentágono) e financeiro (derrube das Torres Gémeas), como naquele fatídico dia 11 do mês nove de 2001, em Washington e Nova Iorque. 

No turbilhão informativo e mediático em que vivemos, o medo do terrorismo é cíclico: atinge picos depois de um acontecimento como o de ontem mas, se as autoridades fizerem bem o seu trabalho, acaba por se desvanecer entrou outras preocupações que nos cobrem o dia a dia. 

Mas desta vez pode ser diferente: os terroristas que chacinaram o «Charlie Hebdo» têm nacionalidade francesa, nasceram em Paris (confirmando essa nova tendência, que Londres 2005 parece ter iniciado, de que a ameaça maior parte de dentro).

Somos todos Charlie: a descoberta que a Europa pode ter feito

Depois, o ataque de ontem teve a novidade de ser direcionado à liberdade de expressão. De pensamento.

Ou melhor, para ser preciso: não foi «novidade» total, porque o mesmo Charlie Hebdo já tinha sido vítima de ataques violentos (bomba e incêndio), pelos mesmos motivos. Mas as consequências de ontem passaram todas as linhas vermelhas.

E ativaram em «nós», sociedade ocidental, sobretudo europeia, algo que estava adormecido, talvez por parecer, erradamente, algo de adquirido e inamovível: o tal direito ao livre pensamento e à livre expressão dele. Sem consequências e sem estar diretamente ligado ao «gosto» ou à «opinião».

É um pouco como a luz elétrica: só sentimos falta quando ela falha. Ontem, percebemos que a liberdade de expressão pode estar sob ameaça séria do radicalismo islâmico, que não sabe pôr as coisas em perspetiva e toma as coisas à letra. 

A reação da «rua europeia», das redes sociais e das redações dos media internacionais (#jesuischarlie) foi simplesmente espantosa. E provou que a Europa, nos momentos decisivos, ainda tem força para se unir no essencial. 

Enfrentar o tema 

Depois, o ataque de ontem teve a novidade de ser direcionado à liberdade de expressão. De pensamento. 

O tema é delicadíssimo: países como França, Alemanha ou Reino Unido têm muitos milhões de muculmanos e uma percentagem imensamente maioritária deles é moderado e quer, simplesmente, viver as suas vidas em liberdade.

Estarão eles, a partir de agora, em perigo nos seus direitos e na sua segurança? São eles as principais vítimas? Pode ser. E isso exige um enquadramento dos líderes muçulmanos moderados, que perante acontecimentos como o de ontem têm que ser mais enérgicos na condenação e pedagógicos na explicação das diferenças. 

A forma como, já ontem, o sheikh David Munir, líder da comunidade muçulmana de Lisboa, comentou os ataque de Paris pode até servir de exemplo para o que outros deviam ter feito e ainda não fizeram.

Do outro lado do Atlântico, Keith Ellison, democrata do Minnesota, um dos dois congressistas americanos de religião muçulmana, só precisou de uns minutos depois do atentado em Paris para escrever no twitter: «Os verdadeiros muçulmanos não fazem isto».

A Liberdade vai vencer o medo? Para já, parece que sim.

Mas o desafio é tremendo. Porque já começou e, na verdade, não tem fim.
  

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