quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Histórias da Casa Branca: o ano inclassificável de Barack Obama

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 31 DE DEZEMBRO DE 2014:


2014 foi um ano bom ou mau para Barack Obama? 

Se alargarmos a análise aos planos interno e externo, torna-se quase impossível uma avaliação simples. O melhor mesmo é dizer que o ano que hoje termina foi «inclassificável» para o Presidente dos Estados Unidos.  

Na frente mais ligada ao jogo político em Washington, o balanço é globalmente negativo. Obama não foi capaz de resolver o «gridlock» que tem marcado o clima na capital política americana. Em parte por inabilidade, também por mera escolha pessoal. «O Presidente nunca teve grande paciência para conversas de circunstância, para jogos de bastidores, tudo coisas fundamentais para conquistar o voto de elementos do outro lado da bancada num Congresso que lhe é especialmente hostil. Nesse sentido, é muito diferente de Bill Clinton, que mesmo quando sabia que tinha um voto perdido, não desistia de falar durante muito tempo com congressistas republicanos», nota Tom Coburn, republicano do Oklahoma que deixou o Senado há poucos dias. 

Coburn é um caso interessante para avaliarmos as contradições em que a Presidência Obama está mergulhada há seis anos: amigo pessoal do Presidente, chegou a trabalhar em conjunto com Barack, quando este era apenas senador democrata do Illinois, sobretudo em matérias de ética. Mesmo assim, Coburn foi opositor acérrimo à agenda do Presidente, nos últimos anos, especialmente na área fiscal, no ObamaCare e nos programas sociais.  

É caso para perguntar: com amigos destes, como é possivel que Obama sobreviva com tantos inimigos figadais que tem no Capitólio? 

A verdade é que, surpreendentemente, a Presidência Obama está viva. E como o ex-senador Coburn repetiu na entrevista ao «60 Minutes» da CBS: «Não concordo em quase nada com ele em termos políticos, mas o Presidente é um tipo sério, honesto. Gosto dele».  

Apesar de tantas certidões de óbito que tem recebido, nos últimos anos, de distintos analistas, políticos e «pundits» na América e fora dela. Apesar de crónica taxa de impopularidade. 

Porquê? Por duas razões, essencialmente.   

Em primeiro lugar, porque a América é, em todos os sentidos, um país muito grande; nela cabem vários «países» diferentes, com segmentos muito diversos, que querem coisas muito diferentes também. A agenda política que foi relegitimiada em 2012, na reeleição de Obama, continua a ter forte apoio em segmentos como os latinos (acordo com Cuba e medidas executivas unilaterais sobre Imigração), nas mulheres (direitos sociais, Lilly Ledbetter Fair Pay Act, condições para o aborto legal), nos jovens (apoio a estudantes com créditos bonificados), nos negros (apesar de Ferguson e das tensões com a polícia). 

Depois, porque Obama tem desenvolvido uma resiliência, uma capacidade de resistir à adversidade política interna muito particular. Libertado das amarras de ter que se reeleger, ciente de que já não tem muito tempo a perder com tentativas irrealistas de «conciliação» com «o outro lado», Obama soltou o sorriso nos últimos dois meses do ano, sinalizou que não quer baixar os braços mesmo depois da derrota nas intercalares e avançou para jogadas fortes: o acordo histórico com Cuba; o acordo ambiental com a China; a independência energética; a visão de uma América de «dreamers» que não expulsa cinco milhões de imigrantes que querem trabalhar nos EUA e cumprir o seu «sonho americano». 

A juntar a tudo isto, vemos que 2014 termina com o maior crescimento económico da última década na América (5% no terceiro trimestre do ano) e o desemprego mais baixo dos últimos seis anos e meio (5.8%). 

Na frente externa, o Afeganistão é, a partir de ontem, oficialmente uma guerra terminada para os EUA (o que acontecerá a seguir já é outra história...). O «Estado Islâmico» (os americanos agora chamam-lhe Daesh ou ISIL) parece estar a recuar ou, pelo menos, a estabilizar no seu raio de ação na Síria e no Iraque. Tudo isto sem o envio de um único soldado americano. 

Durante meses apontada como temível e a ganhar ascendente sobre a América de Obama nessa «nova guerra fria» que este mundo «mais desordenado do que multipolar», como referiu António Guterres na entrevista ao Público, desenha, a Rússia de Putin acaba o ano na iminência do colapso económico, com o rublo a desvalorizar 40%. 

Obama, que insistiu sempre na via do isolamento de Putin pós-invasão da Crimeia, está a ver a sua estratégia de endurecimento das sanções a Moscovo finalmente a ter resultados. «Putin acreditou que nos tinha vencido a todos e que nos tinha conseguido intimidar ao alargar o poder russo. Disse, na altura, que não queríamos entrar em guerra com a Rússia, mas conseguimos impor uma maior pressão (sanções) trabalhando com os nossos parceiros europeus», apontou Barack Obama, em entrevista recente à NPR. «E, hoje, tenho a sensação de que, pelo menos fora da Rússia, algumas pessoas estão a pensar que o que Putin fez não foi muito inteligente», rematou o Presidente dos EUA. 

Mais uma vez, as sentenças de que «os EUA deixaram de ser o ás de trunfo da política internacional» mostraram-se precipitadas.  

Com uma Rússia instável, uma China a desacelerar, um Brasil a parar de crescer e até uma Cuba a querer abrir-se a Washington e virar costas à Venezuela, os EUA voltam a liderar com clareza.

Donde, fica impossível decretar «ano mau» para Obama.

Tudo somado, os pontos positivos talvez sejam mais significativos e duráveis. Mas ainda há dois anos para tirarmos isso a limpo.

Obama termina o ano de 2014 com 48% de aprovação, bem acima dos níveis baixos com que foi aguentando o resto do ano. Em democracia, o povo tem sempre razão.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Histórias da Casa Branca: Obama aproxima-se dos 50 pontos

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 29 DE DEZEMBRO DE 2014:

O ano de 2014 foi, no mínimo, desequilibrado para Barack Obama: teve 11 meses negativos (sobretudo o 11.º, novembro, com derrota pesada nas intercalares para o Partido Democrata), mas um mês de dezembro excelente, que lhe permitiu um «boost» inesperado. 
  
Desde que está na Casa Branca, o 44.º Presidente dos EUA tem vivido quase sempre com saldo negativo de aprovação. O número de americanos que, nos estudos de opinião, desaprovam o desempenho de Obama tem sido superior aos que aprovam. 
  
Mas esses indicadores podem mudar nesta reta final de segundo mandato. 
  
Nas últimas semanas, uma sucessão de acontecimentos, quase todos mérito da boa reação à derrota nas intercalares ou fruto de apostas políticas deste Presidente, mudaram o cenário nos EUA. 

As medidas executivas unilaterais sobre Imigração; o acordo com Cuba; o acordo ambiental com a China; o acordo orçamental com os «inimigos» republicanos que evitou mais uma cena lamentável de «shutdown» como o que aconteceu em 2013; uma medida protetora do ozono, decretada pela agência governamental para o Ambiente; a crítica à Sony por ter, num primeiro momento, cedido ao ataque norte-coreano em relação ao filme «The Interview»; os louros do posicionamento energético que diminui o impacto nos EUA da queda dos preços de petróleo; os indicadores económicos a apontarem para o maior crescimento dos últimos 11 anos na América, com os 5% de aumento no terceiro trimestre de 2014. 
  
Pesquisa do Opinion Research Corporation para a CNN coloca Obama, neste final de 2014, com 48% de aprovação, o melhor valor para o Presidente dos últimos 20 meses, contrastando com os 40 e poucos (por vezes até 38/39) que Obama foi tendo nos últimos dois anos. 
  
Esta subida de quatro pontos desde a última pesquisa CNN/ORC sobre o desempenho do Presidente mostra, também, uma confiança crescente dos americanos no estado da economia. 
  
Mas a base desta recuperação do «momentum» de Obama tem, mais uma vez, a ver com os segmentos que, nas duas eleições presidenciais de 2008 e 2012, foram decisivos nas vitórias de Barack: as mulheres, os jovens e as minorias (todos eles com subidas de dez pontos nos níveis de aprovação do Presidente). 
  
No caso dos latinos, estaremos já aqui a assistir à capitalização do acordo com Cuba e das medidas sobre Imigração. Quanto às mulheres, foi especialmente curiosa a decisão de Obama de, na última conferência de Imprensa do ano, só ter respondido a perguntas de jornalistas do sexo feminino. 
  
Não se tratou de decisão anunciada previamente, nem sequer verbalizada: mas nas escolhas de Obama, pergunta a pergunta, sobre quem iria ter a palavra, as mulheres tiveram sempre prevalência. 
  
Foi, obviamente, algo preparado antes pelo Presidente e que não passou despercebido. 

Margaret Carlson, na Bloomberg, nota: «Nessa conferência de Imprensa, voltámos a ver um pouco do carisma do jovem senador do Illinois que chegou à Casa Branca de forma inesperada em 2008. Passámos o ano a ver o Presidente em dificuldades para lidar com os adversários no Congresso. Mas se Obama conseguir voltar a ter momentos como os de sexta feira, os dois anos que ainda tem para cumprir na Casa Branca podem ser um presente para todos nós. Nunca é tarde para mudar».  

Amie Parnes, no «The Hill», observa: «Um Obama 'libertado' constrói o seu novo momento. A subida nas sondagens, aliada aos bons índices económicos, estão a fazer a Casa Branca acreditar em dois bons anos finais para o Presidente». 

«Ele já não se sente constrangido para agir», nota Steve Elmendorf, lobbista democrata, citado na peça de Amie Parnes. «Acho que ele se sentir constrangido antes das eleições intercalares, para tentar proteger os senadores mais experientes. Agora está mais solto, respira melhor». 

Na mesma linha, antigo membro da Administração Obama, mantido sob anonimato nessa peça do «The Hill», acrescenta: «O mais notável em Barack Obama é que ele manteve sempre confiança em si e nas suas prioridades, independentemente dos resultados exteriores ou do que comentadores e 'pundits' foram dizendo». «Ele nunca quis ser lame duck e vai querer continuar a contar», acrescentou esse antigo membro de governos Obama. 

Mas mesmo neste cenário mais favorável para Obama no final de 2014, não se pense que 2015 será um mar de rosas para o Presidente: «Será cada mais difícil para ele», Julian Zelizer, professor em Princeton. «Os republicanos no Capitólio estão a preparar uma série de impedimentos e obstáculos para os próximos meses», avisa Zelizer. 

Mais do mesmo em DC para o ano que está quase a começar? Talvez. Mas a notícia deste final de 2014 é mesmo o regresso de Barack Obama. 

Contem com ele para os próximos tempos largos. 

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Histórias da Casa Branca: Barack Obama volta a sorrir

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 26 DE DEZEMBRO DE 2014:

E, subitamente, o Presidente dos Estados Unidos voltou a sorrir. 
  
No início de novembro, logo a seguir à derrota nas «midterms», Obama parecia acabado. Ainda 2014 não terminou, passaram sete semanas do triunfo republicano nas duas câmaras do Congresso, e neste curto espaço de tempo o 44.º inquilino da Casa Branca recuperou a face política e ganhou, inesperadamente, o «momentum». 

«É óbvio que Obama não foi um Presidente fracassado. Contudo, também não é provável que seja considerado um grande Presidente, nem um líder emblemático. Ao contrário do que aconteceu com FDR (Roosevelt), JFK (Kennedy) ou mesmo LBJ (Johnson), não haverá um BHO», considera Aaron Miller, no Washington Post. 
  
A verdade é que, em política, o fator surpresa tem um grau de importância muito elevado. Obama tem sabido jogar com isso nos momentos fundamentais: e quando parecia que já não iria ter planos B. 
  
Em maio de 2011, quando tinha que começar a preparar a reeleição e não conseguia descolar dos 40 pontos de aprovação, Barack Obama jogou o seu futuro político na jogada arriscada de aprovar a operação da eliminação de Bin Laden. 
  
Nessa altura, em poucos dias, o Presidente dos EUA também conseguiu ganhar inesperadamente uma nova vida (saltou para valores próximos dos 60 pontos de aprovação, os mais elevados desde os primeiro meses de Presidência). Um ano e meio depois, viria a obter, com facilidade, a reeleição. 
  
Já sem o peso de ir a votos (nem sequer de forma indireta, nas intercalares), Obama voltou a surpreender desta vez: primeiro com as medidas executivas unilaterais para impedir a deportação de cinco milhões de imigrantes ilegais; agora com o acordo histórico com Cuba.  

Em ambos os casos, há a questão social e demográfica: já há quem lhe chame o «primeiro Presidente latino». Talvez seja exagero (e, na verdade, Bill Clinton também já tinha esse título nos anos 90). Mas o peso dos hispânicos na reeleição de Obama estará a contar muito nas prioridades do Presidente.  

Mais relevante ainda será a leitura poítica que Obama tem feito: perante o «gridlock» do Congresso (sendo que parte das culpas da paralisação estará na inabilidade do Presidente em seduzir número suficiente de congressistas do campo oposto para obter aprovações do que propõe), Barack Obama assumiu, claramente, a via dos poderes presidenciais.  

Isso tem os seus problemas: muitos analistas e políticos republicanos acusam-no de não respeitar a tradição de «checks and balances» do sistema de poder na América, em que o Presidente deve caucionar as suas ações junto do Congresso. 

Esse dilema já tinha surgido na Imigração. E volta a verificar-se com Cuba: por muito que o acordo com Raul Castro seja forte e impactante, a verdade é que sem a aprovação do Senado, não haverá confirmação do embaixador norte-americano que o Presidente venha a nomear para Havana. 

E mesmo com relações reatadas entre os líderes (Obama e Castro), sem o Congresso não haverá levantamento oficial do embargo. A economia virá como consequência do acordo político? Veremos. 

De todo o modo, o novo sorriso de Barack Obama é justificado: o Presidente deu provas, nas últimas semanas, que ainda conta. Que ainda tem prestígio internacional suficiente para fazer «gamechanges» como a jogada da aproximação a Cuba. 

A juntar a este «regresso de Obama», os índices económicos do final do ano são muito favoráveis aos EUA: crescimento de 5% no terceiro trimestre, o maior dos últimos 11 anos na América. O desemprego continua a baixar, o consumo privado está cada vez mais forte. 

A Administração Obama termina 2014 em grande. Quem diria? 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Histórias da Casa Branca: Barack Havana

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 22 DE DEZEMBRO DE 2014:

«surpresa cubana de Barack Obama» é a principal notícia da política internacional deste ano. E tem tudo para vir a ser o catalisador da maior mudança da região nas últimas décadas. 
  
Por enquanto, o acordo entre Obama e Raul Castro teve um efeito mais simbólico do que efetivo. 

A administração norte-americana pretende nomear um embaixador em Havana, mas para isso precisa da aprovação do Congresso de ampla maioria republicana. E uma boa parte dos senadores mais influentes do GOP (entre os quais Marco Rubio e Ted Cruz) já prepara um «guião» para travar, pela via legislativa, o caminho de abertura a Havana traçado por Barack Obama. 

Como? Através do bloqueio do financiamento para a instalação de uma embaixada em Cuba (o Presidente tem poder para nomear, mas é o Congresso que aprova o dinheiro).  

Mas a reação popular, nos dois lados (sobretudo em Havana, mas também na opinião pública norte-americana) torna difícil um posição autista da maioria republicana no Congresso. 

Obama terá aberto uma estrada sem retorno rumo à reconciliação com Cuba -- e isso terá óbvias consequências para os países da região, não apenas para os cubanos. 

Muita da retórica contra os EUA de líderes como Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador, que até deu abrigo diplomático a Julian Assange, líder do Wikileaks, na embaixada equatoriana em Londres) ou Nicolas Maduro (Venezuela, herdeiro político de Hugo Chavez, que chegou a chamar "Diabo" a um presidente americano, George W. Bush, nas Nações Unidas) baseia-se na cruzada «anti-imperialista». 

Essa ideia, com o seu quê de romântica e mobilizadora, teve como escudo mais forte o embargo dos EUA a Cuba, que no último meio século. 

A partir do momento em que Obama e Castro anunciaram o restabelecimento de relações oficiais entre os dois países, como implicações imediatas na troca de prisioneiros e na aproximação diplomática e comercial, a tese «anti-americana» fica isolada e corre o risco de se tornar obsoleta. 

Está por verificar que consequências isso terá em países como Venezuela, Equador ou Bolívia. Mas o precedente está lançado, mesmo que estejamos longe de ter a certeza que o embargo será mesmo levantado.  

Na política, o efeito surpresa pode ser muito poderoso. Barack Obama, que depois da derrota dos democratas nas intercalares parecia diminuído na sua «magistratura» política, voltou a provar que é um mestre neste tipo de jogadas.  

E com o preço do petróleo cada vez mais baixo, o espaço para que Maduro levante a voz (mesmo que à distância...) ao Presidente dos EUA é mínimo ou... nulo.   

Muitos ainda acusam Barack Obama de ter desiludido ao não conseguir fazer a «mudança» que em 2008 prometia, na primeira campanha presidencial. Mas já se torna difícil manter a narrativa de que Obama «não conseguiu fazer nada». 

Os dados estão aí: 40 milhões de americanos passaram a ter plano de saúde, com a aprovação do ObamaCare (que embora se mantenha sob fogo republicano, é já uma realidade prática no sistema de apoios sociais dos EUA); promoveu o caminho para uma recuperação económica clara (5,8% de desemprego na América, quase metade do pico da crise); tomou a decisão certa ao dar luz verde à eliminação de Bin Laden; apostou forte na independência energética, colocando os EUA na liderança da exploração do gás de xisto, diminuindo a necessidade de recorrer ao petróleo estrangeiro. 

Muito está ainda a falhar, sim: sobretudo na tentativa de fechar Guantánamo, talvez a promessa não cumprida mais «sonora» dos anos Obama. Mas mesmo a luta contra o Estado Islâmico, sendo extremamente complexa e tendencialmente longa, tem resultados práticos nos últimos meses, com a travagem do avanço territorial do perigoso grupo de radicais sunitas, sem que isso tenha implicado o envio de tropas americanas para o terreno. 

Em plena fase de discussão no Congresso sobre o relatório que explicita as práticas de tortura da CIA, nos anos pós-11 de Setembro, é legítimo que critiquemos o recurso dos EUA a atos como o «waterboarding» (já agora, sondagem CBS News mostra que 49% dos americanos admite que, «por vezes», essa prática pode ser justificável, contra apenas 36% garante que isso nunca se justifica).

Diane Feinstein, senadora democrata da Califórnia, tem sido uma das vozes mais críticas do que se fez durante os anos Bush/Cheney.

Obama tem-se mantido distante dessa discussão, percebendo, naturalmente, que um Presidente dos EUA deve ter relação especial e delicada com a CIA (agência fundamental na luta contra o terrorismo e outras ameaças à segurança nacional). E convém lembrar que o programa de drones, amplamente promovido durante os anos Obama, também gerou vítimas inocentes e não estará livre de ser alvo de relatório idêntico, daqui a uns anos.

Mas não deixa de ser notável que uma sociedade como a americana seja capaz de se auto-questionar desta maneira. Que outro país o faria, desta forma tão aberta e crua?

Obama, sempre pragmático, está cada vez mais solto para, nos últimos dois anos, já sem qualquer trunfo no Congresso, assumir a sua liderança a partir da Casa Branca.

Depois da «surpresa cubana», termina o ano com o epíteto, justo e estimulante, de... Barack Havana. 

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Histórias da Casa Branca: a surpresa cubana de Barack Obama

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 19 DE DEZEMBRO DE 2014:

«Não estou certo que Raul Castro, à idade de 80 e tal anos, vá mudar de forma significativa - mas haverá uma mudança geracional clara em Cuba» 
BARACK OBAMA, Presidente dos EUA, entrevista a David Muir, na ABC, horas depois do anúncio histórico 


Nunca foi prudente anunciar a morte política de Barack Obama. 
  
Desde 2007, quando se garantia que Hillary Clinton «acabaria por bater» o então jovem senador negro do Illinois, esse anúncio foi repetido vezes sem conta: enquanto candidato democrata às primárias, enquanto nomeado presidencial em 2008, na «tempestade» económica dos primeiros anos de presidência, na batalha pela reeleição em 2012, nos primeiros dois anos do segundo mandato na Casa Branca, depois da derrota pesada nas intercalares de novembro de 2014. 

Nesses, e em muitos outros momentos, multiplicaram-se as notícias sobre a «morte política de Barack Obama». Ora, momento a momento, batalha após batalha, essas notícias revelaram-se sempre manifestamente exageradas.  

Nas últimas semanas, no pós-intercalares, o 44.º Presidente dos Estados Unidos foi apresentado como o «lame duck» (pato coxo), que se limitaria a assistir, até à tomada de posse do seu sucessor, perante a maioria esmagadora dos republicanos no Congresso (a partir de janeiro, nas duas câmaras) e com as atenções mediáticas a começarem a virar-se para a corrida presidencial de novembro de 2016.  

Ora, como por aqui se escreveu logo a seguir às intercalares, Barack Obama não vai querer ser apenas um «pato coxo» no jogo político americano.  

Bem pelo contrário: perdidas, por completo, as esperanças de «bipartidarismo» em Washington, o Presidente sente agora, finalmente, espaço livre para, nos últimos dois anos, assumir a sua visão ideológica, sem se preocupar muito com os «consensos alargados» no complicado ambiente político na capital norte-americana.  

Não é que o clima de negociação tenha terminado. Nada disso: o acordo feito sobre despesa (com a contrapartida da «prenda» a Wall Street com o recuo em parte da reforma Frank/Dodd) mostra que ainda há condições para, pelo menos, evitar a repetição de erros como «shutdown» de outubro de 2013.  

Mas Obama, nas semanas que se seguiram à derrota nas intercalares, sinalizou de forma clara que quer aproveitar até ao fim o seu mandato na Casa Branca para deixar a sua marca ideológica e um «legado». 

As medidas executivas unilaterais sobre Imigração tinham sido o primeiro grande sinal - com especial preocupação do Presidente de evitar a deportação imediata de cerca de cinco milhões de imigrantes ilegais.  

Já nesse momento, Barack Obama dava conta de um foco muito particular na comunidade hispânica, cada vez mais influente na sociedade americana e simplesmente decisiva na sua reeleição (71% dos eleitores latinos preferiram Obama a Romney em 2012). 

O que quase ninguém esperaria era que o grande trunfo que Obama preparava para vincar essa sua nova posição seria este acordo histórico que permitiu o reatar de relações com Cuba, 53 anos depois. 

Foram 18 meses de conversas mantidas em total segredo (o que, mesmo a nível tão elevado não é fácil nos dias que correm, entre o perigo de escutas, fugas e indiscrições de intermediários...), iniciadas com um sugestivo «We have to talk» (temos que conversar), dito pelo congressista Jim McGovern, em fevereiro de 2013, a Raul Castro, em pleno Palácio da Revolução em Havana. 

O congressista McGovern, democrata do Massachussets, não estava sozinho na sua vontade de reatar relações entre Washington e Havana. Muitos outros políticos e empresários americanos sentiam essa necessidade. 

Depois, havia a questão dos prisioneiros a resolver. Tudo começou com a libertação, por motivos humanitários, do empreiteiro americano Alan Gross, por parte do regime cubano, em troca de três prisioneiros dos serviços secretos cubanos, em solo americano. 

O Presidente dos EUA compreendeu o espaço comum para que acontecesse um avanço histórico: «Não estou certo que Raul Castro, à idade de 80 e tal anos, vá mudar de forma significativa - mas haverá uma mudança geracional clara em CubaA questão chave aqui está em usar a lista de entendimentos baseada em factos, não na ideologia. Fui muito insistente com Castro para que ele continue a promover a democracia e os direitos humanos e de expressão, em nome da liberdade do povo de Cuba», apontou Obama a David Muir, em entrevista a David Muir, na ABC. 

Obama anunciou um «estender de mão a Cuba para uma nova relação de amizade», recordando, em frase com foros para ser lembrada daqui a décadas: «Todos somos americanos».   

O Papa Francisco foi o mediador improvável, utilizando o seu prestígio mundial (que não tem par, neste momento, com qualquer líder político) e fazendo uso também da forte componente católica da comunidade cubana nos EUA. 

Ainda não está tudo garantido neste tema tão surpreendente. Obama tem poder para, como Presidente, decretar o reatar de relações com Cuba e negociar a troca de prisioneiros.  

Mas para concretizar a aproximação económica e, no limite, decretar o levantamento do embargo, é preciso passar pelo crivo do Congresso. 

Uma parte do Partido Republicano estará até recetivo a uma abertura a Cuba (Rand Paul, senador do Kentucky e possível candidato a 2016 diz que «o embargo não resultou e é positivo que se abra a Cuba»), mas alguns dos mais influentes republicanos no Senado reagiram com fúria. 

Sobretudo dois dos principais congressistas republicanos com ligações latinas: Marco Rubio, da Florida, falou em «vitória da opressão» e acusou Obama de «fazer cedências inaceitáveis a ditadores» e de «não saber negociar». E Ted Cruz, do Texas, alinhou por registo idêntico. 

A verdade é que os primeiros indicadores mostram que Obama tem forte apoio na opinião pública norte-americana, ao enveredar por este caminho. 

Até há semanas, Vladimir Putin era apontado como um dos vencedores do ano e Barack Obama como o grande perdedor. Hoje, a Rússia está a tentar evitar o colapso económico interno e o Presidente dos EUA capitaliza o acordo histórico com Cuba. Os balanços internacionais de 2014 nos media estarão a ser alterados à pressa por estes dias.  

As notícias da morte política de Barack Obama eram manifestamente exageradas.  

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Histórias da Casa Branca: o «cisne negro» russo e o novo trunfo americano

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 17 DE DEZEMBRO DE 2014:


Está a ser um fim de ano de sinais contraditórios, tanto nos mercados, como no campo económico e até na frente do combate às ameaças terroristas e na gestão das (várias) crises no Médio Oriente. 
  
O principal foco dos mercados e dos líderes mundiais nos últimos dias tem sido a situação preocupante da economia russa. 
  
O rublo está em queda livre, o Banco Central em Moscovo avisa que «a situação é crítica», desde que 1998 que a moesa russa não caía assim tanto. 
  
Poderá estar aqui o «cisne negro» que Vladimir Putin insistia em tentar disfarçar, com as movimentações militares que, nas últimas semanas, decidiu executar sobre o espaço vital da NATO. 
  
Moscovo vai avançar para a venda de divisas estrangeiras para estabilizar as finanças, mas há quem tema que, no Kremlin, o poder político tente mais alguma manobra de distração e de exibição de força, enquanto a crise decorre no tesouro russo. 
  
Ao mesmo tempo, e não totalmente independente disso, o petróleo continua a mostrar preços em valores tão baixos (descida de 40% nos últimos seis meses), que só têm comparação com 2009. 
  
À primeira vista, petróleo baixo poderia ser uma boa notícias para «nós», consumidores de gasolina, gasóleo, transportes e uma variedade de outros produtos e serviços de alguma forma dependentes da atividade petrolífera. 
  
Mas a longo prazo, não é bem assim: por um lado, há países cujas economias dependem excessivamente da exportação de petróleo e que, com preços a aproximarem-se dos 50 dólares por barril, se sentem seriamente ameaçados. 
  
Por outro, o que esta queda abrupta do petróleo pode significar é o início de uma retração preocupante da atividade económica em países que supostamente deveriam estar a crescer muito mais. 
  
Para já, no entanto, a descida dos preços continua a ser anunciada como boa: «Haverá vencedores e perdedores, mas a descida dos preços do petróleo é uma boa notícia», comenta Christina Lagarde, diretora do FMI. 
  
Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu, aponta, convicto: «É uma boa notícia, sem qualquer ambiguidade». 

A verdade é que o sentimento geral de apreensão pela conjugação de sinais de alarme: Rússia em crise económico-financeira interna e tentativa de a disfarçar com exibição de músculo militar; Europa a derrapar, embora afastando para já o risco de sobrevivência da zona euro; eleições na Grécia com resultado imprevisível (hoje é dia da primeira volta das presidenciais antecipadas); Brasil, até há meses considerado futura potência económica mundial, simplesmente a parar de crescer; até a China a começar a desacelerar. 

E, é claro, de novo a ameaça do grande terrorismo internacional a pairar: o ataque do «lobo solitário» iraniano na Austrália voltou a recordar-nos isso, mas sobretudo o horrível atentado de ontem em Peshawar (130 crianças mortas numa escola militar no Paquistão) voltou a lembrar-nos que os «taliban», na zona entre o Afeganistão e o Paquistão, continuam a ser séria ameaça, não apenas os radicais sunitas do Estado Islâmico (que apesar de prosseguirem a sua linha de horror com decapitações no Iraque e na Síria, têm sido travados no seu raio de ação, por força das operações aéreas da coligação liderada pelos EUA nas últimas semanas e pelos combates no terreno feitos pelos «peshmerga» curdos e pela oposição moderada síria a Assad). 

No meio de tantas contradições que o plano internacional nos mostra no final de 2014, há três ou quatro ideias a reter sobre o posicionamento americano enveredado por Barack Obama nos últimos anos. 

No último ano, o Presidente tem sido muito criticado pela suposta fraqueza revelada com Assad (à última hora, optou por não acionar o ataque a Damasco pós armas químicas) e com Putin (foi o presidente russo que ficou melhor na fotografia, ao aparecer com a solução de mediação que evitara a operação militar na Síria). 

Mas os meses seguintes contaram-nos uma outra história: a opção de não enviar tropas para o terreno contra o Estado Islâmico, mas ser firme no seu combate e destruição, estará a revelar-se acertada. É caso para perguntar: quão maior seria o avanço do «Daesh» (nome originário do terrível grupo liderado por Abu Bakr Al-Baghdadi) se Assad tivesse caído após possível ataque americano há um ano? E que consequências na opinião pública americana e europeia já haveria se, por esta fase, tivéssemos milhares de baixas americanas, britânicas e de outras nacionalidades, na imprevisível arena de combate ao Estado Islâmico? 

Quanto ao plano económico e à estratégia energética, uma parte da tal descida do petróleo terá já a ver com a menor dependência dos EUA ao exterior. A aposta no gás de xisto e na progressiva «independência energética» está a alterar os dados fundamentais. Os americanos têm (e terão cada vez mais) uma menor necessidade de recorrer a alianças com os países árabes da OPEP e isso está a ter consequências claras na política externa e nas escolhas da Administração Obama.  

A América termina 2014 a crescer consistentemente entre os 3 e os 4% a cada trimestre, e com um desemprego de 5,8% (o mais baixo dos últimos seis anos e meio) e quase metade do pico do pós crise de 2008. 

2015 talvez nos ajude a catalogar de forma mais clara as tendências contraditórias que este final de ano nos está a mostrar. 

Mas não será de admirar que aponte para uma América de Obama cada vez mais pragmática neste jogo de travar a ameaça terrorista com o mínimo custo humano possível e de aumentar a sua independência energética, que lhe permitirá manter a demarcação aos devaneios bélicos de Putin e aos perigos que as várias crises no Médio Oriente continuarão a revelar-nos. 

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Histórias da Casa Branca: o «grande acordo» está a causar fraturas

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT A 15 DE DEZEMBRO DE 2014:


«Recentemente, fiquei muito impressionada com o que Elizabeth Warren disse nos inquéritos do Congresso sobre o papel do poder executivo durante a crise financeira. Gostei de maneira como defrontou Janet Yellen, diretora da Reserva Federal. Muito impressionante. Perante o poder, diz a verdade. Tem os pés bem assentes no chão e vê-se que fala convictamente quando ecoa as preocupações da classe média americana. Sabemos que, atualmente, a ideia de oportunidade não se estende da mesma facilidade a toda a gente.» 
Ariana Huffington, fundadora do Huffington Post, sobre a senadora democrata do Massachussets, Elizabeth Warren 
  
  
O acordo feito entre democratas e republicanos para se aprovar a proposta de despesa para 2015 teve contrapartidas mútuas que ainda não foram digeridas pelos dois lados da barricada. 
  
No campo democrata, sensibilidades como as que são representadas pela senadora do Massachussets Elizabeth Warren ou pelo senador (independente, mas alinhada com a bancada democrata) Bernie Sanders, do Vermont, não aceitam a cedência que o Presidente Obama fez a Wall Street. 
  
A história conta-se rapidamente: no pós-crise financeira de 2008, em pleno início da era Obama e ainda com um Congresso fortemente democrata (tempos prévios às intercalares de novembro de 2010, portanto), houve condições políticas em Washington para se aprovar a Barney Frank/Chris Dodd Bill, que previa medidas de maior regulação financeira. 
  
Algumas delas, as que apontam para menor possibilidade de independência dos bancos e das grandes empresas financeiras em relação aos reguladores, estão agora a ser alvo de tentativa de revogação por parte de congressistas republicanos mais ligados ao «lobby» financeiro. 

A ala mais à esquerda no Partido Democrata vê o que saiu do acordo feito por Obama e Boehner para evitar o «shutdown» como uma «prenda» do Presidente aos interesses de Wall Street.  

A questão demonstra a divergência de posições entre os democratas, pós derrota nas intercalares: manter as armas apontadas ao «business as usual» (a abordagem da senadora Warren e do senador Sanders) ou optar por uma via mais pragmática, com o objetivo de preservar ideias essenciais (claramente, a visão escolhida por Barack Obama)? 

«Isto é apenas o começo do novo Congresso. Não é a última luta do último Congresso», comenta o congressista democrata da Califórnia, George Miller, citado pelo «Politico Magazine». 

Não será propriamente, para já pelo menos, uma fratura exposta no Partido Democrata. Isto porque o Presidente está longe de ter baixado as armas e levantado os braços, como fez questão de provar quando avançou para um conjunto de ações executivas unilaterais sobre Imigração, perante a paralisação dos republicanos no Capitólio. 

Mas que há movimentações novas no partido de Obama, isso há. Nancy Pelosi, que há quatro anos foi a maior aliada de Obama na aprovação épica da Reforma da Saúde (na altura, como speaker do Congresso), é agora a líder da minoria democrata numa Câmara dos Representantes fortemente republicana. E tem sinalizado a preferência por uma via de «confrontação», sendo aliada da estratégia de Elizabeth Warren.  

Há que colocar este novo quadro político em contexto. Obama estará em situação similar à de Bill Clinton quando, em 1994, teve derrota pesada nas intermédias e, para sobreviver com algum tipo de capacidade de cumprir a sua agenda presidencial, foi forçado, por vezes, a fazer ouvidos de mercador à sua esquerda e a abrir-se, em alguns capítulos, à «negociação com o inimigo». 

«É quase um truísmo afirmar-se que a única forma de um Presidente sem grandes maiorias no Congresso ter alguma coisa aprovada é enfurecer a sua base de apoio. E a história insiste em mostrar-nos que problemas políticos de curto prazo com a nossa bancada podem valer ganhos de longo prazo a quem está na Casa Branca», lembra Todd Purdum, no «Politico Magazine», em artigo intitulado «Obama's Big Clinton Moment». 

Mas do lado republicano também há divisões. A ala Tea Party não se impressionou com a tal «prenda» de Obama a Wall Street e queria aproveitar a negociação sobre a despesa para destruir de vez o ObamaCare. 

Já se percebeu quem John Boehner desistiu dessa ideia. Para o pragmático speaker republicano da House, negociar com o Presidente é uma necessidade e pode ser vantajoso.  

Nos próximos meses espera-se, pois, que nomes como Elizabeth Warren e Bernie Sanders se afirmem como uma espécie de «consciência crítica» dos democratas. Mas o que vai interessar mesmo é se a conversa entre Barack Obama e John Boehner continuará a ser produtiva.