terça-feira, 2 de agosto de 2011

Histórias da Casa Branca: O Armagedão pode esperar


Barack Obama e Michelle Bachmann: dois estilos opostos, dois mundos diferentes. Ambos representam faces reais da América que entram em choque em processos como a negociação do tecto da dívida. Desta vez, o radicalismo da Direita americana, vertido no Tea Party, levou a melhor


O Armagedão pode esperar

Por Germano Almeida


Ainda não foi desta que chegou o dia do «Armagedão» financeiro. Mas pode ter sido apenas o adiar de um problema gigantesco que os Estados Unidos terão que ser capazes de resolver – independentemente da cor política de quem ocupa o poder em Washington.

O acordo de última hora, aprovado na Câmara dos Representantes e confirmado pelo Senado, autoriza o Governo norte-americano a aumentar o tecto da dívida em mais 2,4 biliões de dólares (que irão juntar-se aos 14,3 biliões já atingidos pelos EUA desde 16 de Maio passado). Em compensação, a Administração norte-americana terá que proceder a cortes profundos na despesa em vários sectores, incluindo a Saúde, a Segurança Social e a Defesa.

Evitou-se o cenário de catástrofe: sem acordo, o dia de hoje (2 de Agosto de 2011) teria entrado para a história como o momento em que a maior potência do Mundo deixara de ser capaz de cumprir os seus compromissos.

No contexto de crise económica nos EUA e na Europa, e com o ambiente de nervosismo dos mercados, já havia quem apontasse o ‘default’ americano como o símbolo do declínio do eixo atlântico.

Mas a solução encontrada acaba por mostrar sérias perdas tanto nas ambições de Obama (que sempre defendeu, neste processo, o aumento de impostos às classes altas e às grandes empresas, a fim de aumentar as receitas, para reduzir o impacto dos cortes sociais), como também dos líderes republicanos no Congresso – que perderam o controlo do processo para a minoria radical do Tea Party.

A batalha pelo aumento do tecto da dívida fez subir o tom da conflitualidade política em Washington a níveis que começam a levantar questões sobre a viabilidade do sistema político norte-americano. E voltou a lançar dúvidas sobre a real capacidade de Obama conseguir cumprir a sua agenda política, num quadro de tamanha hostilidade.

Guerra Civil em Washington?
Jorge Almeida Fernandes, no P2, chamou-lhe ‘a guerra civil sem armas’: «Cento e cinquenta anos após o começo da Guerra Civil americana, eclodiu em Washington uma outra ‘guerra’ – esta sem armas – que ameaça lançar os Estados Unidos na ‘insolvência técnica’. É uma guerra dentro de outra guerra: o conflito entre republicanos e democratas é dobrado pelo confronto que começou a dilacerar os republicanos. Tão grave como desafiar o ‘default’, é a mensagem enviada aos americanos e ao mundo: a superpotência poderá tornar-se ingovernável».

Obama terá que ser apontado como um dos derrotados da peleja: não fez valer a sua bandeira de aumento de impostos para os privilegiados – e terá que aplicar, nos meses que restam do seu primeiro mandato, cortes dolorosos em programas sociais, em pleno processo de recuperação económica.


John Boehner, speaker do Congresso (na foto), e o senador Mitch McConnell têm um objectivo: evitar o segundo mandato de Barack Obama

Mas John Boehner e Mitch McConnell, speaker do Congresso e líder da minoria republicana no Senado, também não podem, propriamente, cantar vitória: ficam na fotografia como os principais responsáveis por terem colocado a América a um dia da catástrofe financeira e não foram capazes de impedir que o radicalismo dos congressistas do Tea Party contaminasse as negociações.

A perversa vitória do Tea Party
Feitas as contas a perdas e ganhos entre os dois pêndulos do sistema político norte-americano, a conclusão é tão clara como inquietante: o regime bipartidário no qual assentou o clima de «consensos alargados» nos EUA, nas últimas décadas largas, está em risco.

Por culpa, certamente, da incapacidade de democratas e republicanos em assegurar entendimentos básicos para que o sistema funcione sem perturbação. Mas, sobretudo, pela manifesta impotência do ‘establishment’ dos dois principais partidos em travar o radicalismo irresponsável do Tea Party.

O termo «Tea Party» foi-se tornando tão presente na linguagem mediática da política norte-americana que, muitas vezes, a sua definição não passa com rigor. Na verdade, não se trata de um partido autónomo, com existência independente e disseminação eleitoral por todos os estados da América.

Do que, realmente, se fala quando se fala de «Tea Party» tem a ver com os movimentos da Direita radical americana que sempre existiram, mas que foram ganhando mais espaço mediático após a eleição de Barack Obama, e sobretudo durante a campanha das intercalares de Novembro do ano passado, como reacção dos sectores ultraconservadores americanos ao que consideram ser a «Administração mais à esquerda das últimas décadas na América».

Esses argumentos colhem facilmente numa fatia significativa do eleitorado americano -- e ganharam legitimidade política após as 'midterms', com a eleição de vários congressistas apoiados pelo Tea Party, num perigoso processo de «contaminação» do Partido Republicano.

Mesmo tendo sido associados, nestes últimos dois anos, a coisas disparatadas como a polémica (toda ela baseada em mentiras e delírios) de que Obama não teria nascido na América, a verdade é que há duas ou três bandeiras dos movimentos «Tea Party» que são muito difíceis de desmontar: o respeito cego «pela Constituição»; a defesa dos «valores americanos», que os correligionários do Tea Party garantem estar em perigo com um Presidente como Obama; o ataque, à exaustão, ao «despesismo» de programas federais como a Reforma da Saúde, defendendo cortes radicais nos impostos.

O clima de crise económica, particularmente forte em estados do Midwest que apoiaram Obama em 2008, mas que se mostram hoje muito críticos com as políticas económicas desta Administração, tem servido de adubo aos argumentos do Tea Party.

«Responsável» ou «fraco»?
Depois de semanas de impasses forçados e de muita irresponsabilidade da ala direita do Partido Republicano, o ‘last minute deal’ (aprovado por 269-161 na Câmara dos Representantes e por 74-26 no Senado) salvou a face do primeiro mandato de Obama – mesmo tendo sido a poucos metros de cair na ribanceira, é já certo que Barack não entrará para a história por ser o primeiro Presidente dos EUA a entrar em incumprimento.

Mas as consequências políticas da acção do Presidente neste processo estão ainda por detalhar na sua verdadeira extensão.

A impressão final pode ter sido a de que Obama voltou a ter uma «atitude responsável», mantendo, até ao limite, as vias do diálogo, mesmo quando, do outro lado, recebia sinais de que estavam a fazer tudo para liquidar a sua Presidência -- ainda que isso levasse a América ao ‘default’.

A faceta «conciliadora» e «mediadora» do Presidente teve bons resultados em batalhas anteriores, como a Reforma da Saúde ou a Reforma Financeira. Mas, desta vez, o clima de guerrilha chegou longe demais.

Michelle Bachmann, congressista do Minnesota que deverá ter o apoio do Tea Party para as presidenciais de 2012, repetiu a ideia à exaustão, nos últimos dias: «Esta presidência é um fracasso. Obama é um falhado».

Se já não é muito de admirar que a linguagem dos líderes da Direita radical esteja a este nível, o que pode ser bem mais preocupante para as contas eleitorais de Obama são as críticas que lhe foram dirigidas pela ala esquerda do Partido Democrata.

Os «liberais» esperavam «mais firmeza» por parte do Presidente, na imposição do aumento de impostos aos ricos e às «big corporations».

Encostado à parede pela maioria republicana no Congresso, Obama não tinha alternativa: abdicou de uma boa parte da sua agenda económica, em nome do cumprimento de pagamentos dos «cheques aos idosos, aos mais pobres e aos veteranos de guerra».

Enquanto, nos corredores de Washington, os políticos vão adiando o monumental problema da dívida, a verdade é que a América conseguirá continuar a cumprir os seus mais diversos compromissos num prazo que se estende para lá de Novembro de 2012.

O dia do «Armagedão» pode até nem estar longe para os EUA – mas já não vai acontecer durante o primeiro mandato de Barack Obama.

Os profetas da desgraça vão ter que ser um pouco mais pacientes.

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