sábado, 7 de fevereiro de 2009

Coisas do Sexta (XI): Quando o Supremo faz mesmo Justiça


Trabalho pubicado no jornal SEXTA em Junho de 2008 (ndr: meio ano depois, com a vitória de Obama e a assinatura do Presidente que ditou o encerramento da prisão norte-americana em Guantánamo, a releitura destes textos não deixa de ser curiosa...)

Quando o Supremo
faz mesmo Justiça


EUA Os detidos de Guantánamo viram reconhecidos os seus direitos fundamentais. A Constituição americana deu mais uma prova de que ainda está actual

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos tomou uma decisão que pode acelerar uma mudança que muitos antecipam na forma como a América tem tratado a sua imagem no Mundo.

Numa deliberação à justa, com cinco votos a favor e quatro contra, o Supremo deliberou que mesmo os combatentes inimigos dos EUA terão direito a aceder de todas as garantias individuais previstas na Constituição americana.

Lida assim de rompante, parece uma deliberação banal – afinal de contas, é obrigação do Supremo Tribunal fazer cumprir as leis fundamentais de uma nação.
Mas esta não é apenas mais uma decisão. Ela confirma, em primeiro lugar, a queda livre em que entrou a Administração Bush, que exerceu fortes pressões no sentido de que o Supremo não tomasse uma posição desta natureza.

Por outro lado, o Supremo Tribunal americano deu mais uma prova de que nos momentos certos, nas alturas verdadeiramente importantes – aquelas que definem a solidez de um país e de todo um edifício judiciário – o sistema acaba por encontrar formas de consagrar o que é fundamental.

É claro que não é sempre assim – e encontrar exemplos de injustiças flagrantes produzidas pelos tribunais americanos seria, aliás, um exercício muito fácil.
A questão é que uma das virtudes da Constituição americana (aprovada em Filadélfia em 1787) continua a ser, mais de 200 anos depois de ter sido escrita, a sua simplicidade: em contraponto à lógica intrincada dos códigos dominantes na Europa, o texto fundamental dos Estados Unidos aponta princípios gerais, mas que assentam em valores sólidos e que não se desactualizam, como a liberdade de expressão ou de escolha.

Aspecto importante: em mais de dois séculos, o texto inicial teve apenas 27 emendas, sendo as primeiras dez as que asseguram os direitos básicos dos cidadãos contra o poder eventualmente repressivo do Estado.

Sinais de esperança
As denúncias de violações dos direitos humanos por parte do Estado norte-americano em Guantánamo já tinham chegado ao Supremo. Mas, desta vez, o mais elevado tribunal norte-americano foi muito claro ao reconhecer o direito de 80 detidos de Guantánamo a contestarem a sua prisão nos tribunais comuns.

Pode ter sido aberta a caixa de Pandora, numa questão que tem manchado a imagem da América e que em breve conhecerá, por certo, uma nova etapa política: é que tanto Barack Obama como John McCain já deixaram bem claro que irão fechar a prisão militar situada na baía cubana, que mantém detidos, sem culpa formada, perto de 270 suspeitos de terrorismo.

O nomeado republicano não teve dúvidas em afirmar que «Guantánamo é uma vergonha para a América».

OS NOVE JUÍZES DO SUPREMO
-- John Roberts (presidente); conservador, 53 anos, nomeado por George W. Bush em 2005
-- John Stevens; liberal, 88 anos, nomeado por Gerald Ford em 1975
-- Antonin Scalia; conservador, 72 anos, nomeado por Ronald Reagan em 1986
-- Anthony Kennedy; conservador moderado, 71 anos, nomeado por Ronald Reagan em 1988
-- David Souter; liberal, 68 anos, nomeado por Bush pai em 1990
-- Clarence Thomas, conservador (único negro), 59 anos, nomeado por Bush pai em 1991
-- Ruth Ginsberg, liberal (única mulher), 75 anos, nomeada por Bill Clinton em 1993
-- Stephen Breyer, liberal, 69 anos, nomeado por Bill Clinton em 1994
-- Samuel Alito, conservador, 58 anos, nomeado por George W. Bush em 2006

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BAÍA DOS ENGANOS Guantánamo tem uma história bizarra: localizada em Cuba, esta baía de 112 quilómetros quadrados está sob domínio norte-americano há mais de um século (desde 1903), a troco do pagamento de… 4085 dólares por ano.
É neste território estranho, que escapa ao controlo das convenções internacionais e da fiscalização da ONU – e que consegue ser, ao mesmo tempo, gerido pelo Tio Sam sem ser território norte-americano – que os Estados Unidos têm localizada uma das suas mais importantes prisões militares: Camp Delta.

Depois do 11 de Setembro, Guantánamo passou a ser usada pela Administração Bush para servir de prisão para suspeitos de terrorismo, na sua maioria afegãos e iraquianos. Os indícios de que, desde 2002, foram praticados actos de tortura e desrespeito pelos Direitos Humanos e pela Convenção de Genebra foram-se avolumando. Calcula-se que mais de 800 pessoas foram detidas em Guantánamo, nestes seis anos.

Após seis anos de denúncias e investigações, a decisão do Supremo Tribunal dos EUA e a lenta agonia da presidência Bush abrem fundadas expectativas de que a impunidade em Guantánamo pode ter os dias contados.

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Os casos Larry Flint
e «Row vs Wade»

Nas últimas décadas, foram vários os casos em que o Supremo tomou decisões marcantes para a imagem da própria justiça americana.

Em 1973, o processo «Row vs Wade» entrou para a história por ter tido como desfecho
o reconhecimento, por parte do Supremo, de que o aborto era um direito de escolha das mulheres. Alegando a quarta emenda, o Supremo considerou que as leis anti-aborto violavam direitos constitucionais. O caso ainda hoje gera polémica e marcou divisões políticas que persistem.

Outra decisão relevante ocorreu em 1988, quando o Supremo deu razão a Larry Flint no caso «Hustler Magazine vs Jerry Falwell». Flint era o polémico director de uma revista de conteúdos eróticos, que chocou a face puritana da América. Falwell, um reverendo protestante com um conservadorismo fundamentalista, processou Flint na sequência de artigos que considerou humilhantes.

Depois de ter sido condenado, em tribunais inferiores, a pagar 250 mil dólares ao reverendo, Larry Flint acabou por ver reconhecido, no Supremo, o seu direito à livre expressão, à luz da primeira emenda.

O Supremo ilibou Flint por unanimidade (oito contra zero), num caso que passou para
o grande ecrã, através de um filme realizado por Milos Forman, com Woody Harrelson, Courtney Love e Edward Norton nos papéis principais.

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