sábado, 22 de novembro de 2008

Coisas do Sexta (III): Duas visões para reerguer a América


Publicado no jornal SEXTA de 31 de Outubro de 2008, quatro dias antes da grande eleição:

Duas visões para
reerguer a América


ELEIÇÕES Vem aí um novo Kennedy ou um novo Reagan? Obama e McCain querem recuperar a «nação indispensável». Ou não apontassem eles o mesmo Presidente ideal -- Lincoln, aquele que aboliu a escravatura

Há duas imagens, quase iguais, estampadas em t-shirts que são distribuídas em comícios, que simbolizam o que está em jogo nestas eleições presidenciais nos Estados Unidos. Ambas exibem o rosto de cada um dos candidatos, pintado em tons de vermelho e azul, as duas cores que preenchem o imaginário americano. Com uma pequena, mas significativa, diferença: a t-shirt de Obama diz «Hope», a de McCain diz «Hero».

No fundo, no fundo, é isto o que ainda faz oscilar milhões de eleitores: no jovem senador do Illinois, primeiro negro a obter a nomeação por um dos dois partidos do sistema, vêem a esperança; no experiente senador do Arizona, veterano da guerra do Vietname, vêem a personificação do herói patriota.

Em duelo estão duas grandes histórias americanas. Muito diferentes nos pormenores, nos percursos e, claro, na idade. Mas, à sua maneira, as narrativas que Barack e John têm transmitido, ao longo destes quase dois anos de campanha permanente, recolhem a simpatia e o respeito da esmagadora maioria dos americanos.

É comum afirmar-se, em cada corrida à Casa Branca, que «estas serão as eleições mais importantes de sempre». Isso já se dizia em 2004, por exemplo. Mas há um conjunto de circunstâncias que fazem desta eleição de 2008 um momento realmente histórico: além da singularidade dos nomeados, está em jogo a capacidade dos democratas -- que nos últimos 44 anos só venceram três eleições -- conseguirem aproveitar o desastre dos anos Bush para voltarem a eleger um Presidente.

OS NOVOS TEMPOS DIFÍCEIS
E quando todos pensavam que em disputa estavam duas visões do que deve ser a América, lideradas por dois candidatos que se lançaram para a nomeação depois de caminhadas fantásticas, em que foram capazes de ultrapassar os favoritos (Hillary Clinton do lado democrata, Rudi Giuliani e Mitt Romney nos republicanos), eis que regressa, e em força, a «Economia, estúpido».

Os próximos anos vão ser duros. Podem vir aí «os novos tempos difíceis», como apontou a capa da Time, no início de Outubro. Quem vier a tomar posse a 20 de Janeiro de 2009, herdará uma situação cuja gravidade ainda não está totalmente avaliada. Mas Obama e McCain já provaram que são capazes de vencer as mais inesperadas batalhas. Um dos dois será o 44.º Presidente dos Estados Unidos da América.

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BARACK OBAMA
Uma história americana


Pode passar, em quatro anos, de mero desconhecido a titular do cargo político mais influente do Mundo. O país que elegeu, por duas vezes, George W. Bush é o mesmo que exibe, agora, esta impressionante capacidade regeneradora.
Orador brilhante, alia a profundidade intelectual, própria de quem se formou em Harvard, com um lado humano que lhe permite chegar ao americano comum.
Da mãe, uma americana branca do Kansas, herdou o idealismo e a bondade. Do pai, Barack Obama sr., queniano que ganhou uma bolsa para estudar nos Estados Unidos, guardou a máxima que lhe tem ajudado na sua fantástica ascensão política: «A confiança é a qualidade mais importante para o sucesso».

PORQUÊ ELE?
Porque Barack agarrou os temas do futuro. «É difícil ver o que possa impedir Obama de ser o próximo Presidente. Ele construiu em seu redor uma expectativa e uma excitação que só têm paralelo com Kennedy, em 1960», observa o inglês William Rees-Mogg. Este histórico colunista do The Times acrescenta: «Ele oferece uma nova geração de ideias que atrai uma nova geração de eleitores. Os americanos não querem voltar aos anos 90, muito menos às décadas de 70 ou 80. Obama é o candidato do século XXI».

O QUE O TORNA ESPECIAL
A eloquência.
«É o melhor orador político desde Mario Cuomo. Melhor que Bill Clinton. Melhor que Reagan. É brilhante, de uma eloquência empolgante. Talvez só comparável a Martin Luther King», aponta Michael O’Hanlon, investigador do Council on Foreign Relations e antigo conselheiro da campanha de Hillary Clinton.
David Brooks, colunista no New York Times, reforça: «Durante muitos anos, pensámos que não seria possível falar melhor que Clinton. Mas Barack consegue ser mais brilhante do que Bill na arte de conquistar multidões em comícios. Nesse plano, é imbatível».

UM MOMENTO DEFINIDOR
A vitória no Iowa.
Antes das primárias, o fenómeno Obama continuava por legitimar. O estado de graça do senador negro já durava há mais de três anos, desde o discurso na Convenção Democrata de 2004, mas pairava uma certa ideia, mesmo que não verbalizada, de… ‘isto não vai poder acontecer’. Ao arrebatar, folgadamente, um estado do Midwest, com 97 por cento de eleitores brancos, Barack provou que podia mesmo lá chegar. A partir desse momento, tudo mudou.

TRÊS TRAÇOS MARCANTES
O espírito inovador.
Mesmo que falhe a eleição, Barack já mudou para sempre a forma de fazer campanhas. Partiu do nada e criou uma base de apoio que veio de baixo, das pequenas contribuições. Usou a internet como melhor fonte de financiamento, batendo recordes de angariação de fundos.
Um impressionante auto-controlo. Na polémica dos sermões de Jeremiah Wright (pastor que o casou e foi seu guia espiritual durante anos), Obama respondeu com serenidade e ponderação às frases inflamadas que apelavam a ressentimentos raciais. O discurso que proferiu em Março, quando se demarcou do reverendo, terá sido o melhor da sua carreira política e só assim pôde escapar ileso a um escândalo que poderia ter-lhe comprometido a nomeação.
A capacidade de desmontar rótulos. O facto de ser negro nunca o forçou a assumir-se como «candidato étnico». Isso revelou-se decisivo: a abrangência da sua mensagem permitiu-lhe atingir os mais diversos segmentos. E tornou-o «presidenciável».

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JOHN MCCAIN
Destinado a servir


A sua vida tem sido um permanente combate. Como qualquer lutador, já ganhou e já perdeu. Curiosamente, foi a forma como soube reagir às derrotas que construiu a sua história de coragem e independência – primeiro na guerra, depois na política.
Tem 72 anos, mas faz parte de uma linhagem que parece não envelhecer com o tempo. A sua mãe, Roberta McCain, vai com 96 anos e era vê-la na Convenção Republicana, rija e sorridente. John McCain não é George W. Bush. É incomparavelmente mais culto e aberto à diversidade. Mas será que isso vai bastar para poder escapar aos estilhaços de uma herança maldita?

PORQUÊ ELE?
Porque John é o único republicano capaz de sobreviver ao desastre de Bush. «McCain pode disputar os independentes com Obama e tem o respeito de um enorme leque de democratas», explica Dan Balz, no Washington Post. William Rees-Mogg traça-lhe o caldo de virtudes: «McCain tem as qualidades essenciais para um Presidente. É inteligente, culto, corajoso, humano e experiente. E será o candidato que melhor conhece a guerra por dentro, desde o Presidente Eisenhower».

O QUE O TORNA ESPECIAL
A coragem.
«Os americanos gostam de histórias improváveis e deixem-me que vos diga: a vida de John é uma história e pêras», comenta Bill Bennett, secretário da Educação durante a Administração Reagan.
«É um rebelde, no melhor sentido da palavra. A sua fama de maverick não é só propaganda: consultem o registo de John em mais de 20 anos no Senado e perceberão que esteve quase sempre do lado certo, mesmo quando o Partido Republicano não o acompanhou», elogia Rudy Giuliani, antigo rival nas primárias e amigo pessoal de McCain.

UM MOMENTO DEFINIDOR
O triunfo na Carolina do Sul.
McCain lançou-se para a nomeação no mesmo estado que o travara, há oito anos. John começara as primárias com o libelo do Iraque, mas a vitória no New Hampshire deu-lhe alento. Dizia-se que na Carolina do Sul, em sistema fechado (só eleitores republicanos a votar), John não teria hipóteses perante Romney e Huckabee, colados à ala conservadora. Mas o senador conseguiu a reconciliação com as bases, obtendo um triunfo que o lançou para uma nomeação que, semanas antes, parecia impossível.

TRÊS TRAÇOS MARCANTES
A independência.
Já depois de ter obtido a nomeação, continuou a dizer que Guantánamo é «uma vergonha para a América» e teceu duras críticas à política energética da Administração Bush.
A capacidade de arriscar. Quando Obama começava a descolar, os estrategas de McCain pediam um golpe de asa que mudasse dramaticamente a corrida. John jogou forte e lançou Sarah Palin, um tiro no desconhecido. Só se tinham visto uma vez.
Uma resistência de aço. Aos 72 anos, pretende iniciar um ciclo que pode durar até 2017. Mas a idade não tem sido um tema central. John irradia robustez, num corpo marcado pela tortura e pelo cancro da pele, que o atacou quatro vezes. Quando Katie Couric, na CBS, lhe perguntou se não temia que a desvantagem já fosse impossível de recuperar, McCain explicou: «Katie, estive na guerra, fui torturado, vi companheiros a morrer à minha frente. Não é uma derrota numa campanha política que me fará perder uma boa noite de sono».

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O que eles
têm em comum


-- Abraham Lincoln é o Presidente que mais admiram na história americana (em segundo lugar está, para McCain, Ronald Reagan e, para Obama, John Kennedy)

-- defendem o reforço das fronteiras, mas são a favor da legalização dos imigrantes clandestinos que já residam nos EUA

-- pretendem encerrar a prisão de Guantánamo

-- condenam a «ganância» dos especuladores de Wall Street e prometem proteger as «vítimas de Main Street»

-- admitem atacar o Irão, se o projecto nuclear de Ahmadinejad for concretizado


O que
os separa


-- Obama pretende aumentar os impostos sobre os contribuintes que ganhem mais de 250 mil dólares/ano e quer agravar a carga fiscal das petrolíferas; McCain aposta numa redução geral da carga fiscal e promete respeitar o corte aprovado durante os anos Bush

-- as maiores reduções fiscais no plano de Obama são para a classe média, os mais pobres e os idosos; o programa de McCain beneficia, sobretudo, as empresas (já depois da crise financeira, o republicano apresentou um pacote de ajuda imediata aos contribuintes americanos)

-- McCain apoiou a guerra do Iraque desde o início (esteve contra a estratégia de Donald Rumsfeld, mas foi o maior defensor da surge, aplicada pelo general David Petraeus); Obama insurgiu-se contra a intervenção militar em 2002, ainda antes da guerra

-- Obama promete rever o Patriot Act, por considerar que viola direitos fundamentais; McCain é a favor da lei de segurança nacional feita após o 11 de Setembro, mesmo que implique o acesso a conversas privadas, sem mandado judicial

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Sabia que…

-- John McCain pode tornar-se, aos 72 anos, o mais velho Presidente da história dos EUA?
Pode vir a ser o primeiro octogenário a liderar a América (no último dia do segundo mandato, a 20 de Janeiro de 2017, terá 80 anos). Ronald Reagan tinha 73 quando foi reeleito, mas era mais novo do que McCain quando tomou posse pela primeira vez

-- Barack Obama pode vir a ser, aos 47 anos, o quarto Presidente mais jovem da história dos EUA?
Só Theodore Roosevelt (42 anos), John Kennedy (43) e Bill Clinton (46) eram mais novos quando tomaram posse -- embora Theodore Roosevelt tenha sido Presidente aos 42 anos, não por eleição directa, mas por força do assassinato de William McKinley

-- Obama pode vir a ser o primeiro democrata que não vem de um estado do Sul a chegar à Casa Branca nos últimos 48 anos?
John Kennedy, que representava o Massachussets, foi o último a consegui-lo. Lyndon Johnson (Texas), Jimmy Carter (Geórgia) e Bill Clinton (Arkansas), os três únicos democratas a conquistar a Presidência depois de JFK, eram sulistas

-- Ronald Reagan, na sua reeleição, em 1984, ganhou 48 dos 50 estados em concurso?
Walter Mondale, o nomeado democrata, só conseguiu obter 13 dos 538 Grandes Eleitores, arrecadando apenas o Minnesota e District of Columbia.

-- o duelo de 2000, entre George W. Bush e Al Gore, foi o mais disputado do último século?
O Colégio Eleitoral foi dividido quase ao meio: Bush obteve 271 Grandes Eleitores, Gore 267, apesar de o democrata ter ganho o sufrágio popular, por cerca de 500 mil votos. Se Al Gore tivesse vencido no seu estado natal, o Tennessee, a dramática recontagem da Florida, travada pelos juízes do Supremo, não teria sido decisiva para a vitória de Bush

-- além de Al Gore, houve mais três candidatos que ganharam o voto popular, mas não foram eleitos?
Em 1824, John Quincy Adams teve menos 38 mil votos que Andrew Jackson, mas foi eleito; em 1876, Samuel Tilden teve mais 264 mil votos do que Rutherford Hayes, mas Hayes ganhou o Colégio Eleitoral por um voto; em 1888, Benjamin Harrison perdeu a votação popular por 96 mil votos para Grover Cleveland, mas ganhou o Colégio por 65 Grandes Eleitores.

-- há quatro anos, apesar de Bush ter tido mais três milhões de votos do que Kerry, bastaria ao democrata mais 118 mil votos no Ohio para ser eleito?
Foi quase o reverso da medalha do que acontecera em 2000. Em 2004, Bush venceu o voto popular de forma inequívoca, mas esteve perto de perder o Colégio Eleitoral, segurando os 20 Grandes Eleitores do Ohio por uma unha negra

-- Obama ou McCain vão quebrar um jejum de 48 anos em relação aos senadores?
John Kennedy, em 1960, foi o último senador a atingir a Casa Branca. Desde aí, os americanos têm preferido eleger governadores de estado (Jimmy Carter, Ronald Reagan, Bill Clinton, George Bush filho), ou Presidentes e vice-presidentes em exercício (Lyndon Johnson, Richard Nixon, George Bush pai). Mas, em 2008, é já certo que voltará a ser um senador

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O apoio de Powell
a Barack Obama


Se fosse possível medir a importância dos apoios, a declaração mais influente talvez fosse a de Colin Powell.

Chefe militar na primeira Guerra do Golfo, secretário de Estado no primeiro mandato de George W. Bush, Powell é um republicano moderado.

Foi o primeiro negro a chefiar a diplomacia americana e muitos acreditam que até poderia ter-se antecipado a Barack Obama como primeiro negro a ter hipóteses reais de ser Presidente – mas preferiu não concorrer, em 2000. Após o episódio do Iraque, Powell foi assumindo uma distância crítica em relação aos anos Bush.

O que disse o culto general na hora de declarar preferência? «Conheço bem os dois candidatos e, sinceramente, creio que os dois seriam bons Presidentes. Sou amigo de John há 25 anos. Nos últimos dois anos, fiquei a conhecer bem o senador Obama. Vi com desagrado a insistência da campanha de McCain em todo esse lixo à volta de Bill Ayers. E creio que Sarah Palin não está preparada para ser Presidente, uma das funções previstas para um vice-presidente. Obama tem estilo e substância. É um candidato de enorme dimensão intelectual, que tem mostrado firmeza e lucidez. Por tudo isto, o senador Obama é a minha escolha».

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